Queridos leitores, essa é a terceira vez que tento iniciar nossa conversa por este livro. Nas outras vezes, acabei por acreditar que não seria aderente ao tema e mudei de assunto: O livro acabou ficando deprimido. O tema central dele pode parecer um tanto difícil, pois visa não confundir o Direito com a Lei, e nem esta com a Justiça. Contudo, com a dimensão e popularidade que o sistema judiciário tem tomado no Brasil ultimamente, essa conversa teria de acontecer uma hora ou outra.
Pois bem, a resposta à personagem fictícia da semana passada – Eulália – descrevendo eventos reais, foi tão positiva que podemos tentar de novo, mas, dessa vez, o livro não descreve fatos históricos, mas sim, usa de uma alegoria, para discutir questões permanentes da raça humana.
Por favor, para que aproveitemos a conversa, ela não pode ocorrer dividindo a atenção com o celular e nem na correria do trabalho. Essa conversa é para acontecer ao acender um charuto ou beber um vinho, ou, melhor ainda, quando estamos cozinhando com calma ou tranquilamente tomando o café da manhã: Então, nada daquela afobação prática do almoço semanal.
O exemplar que tenho é de 1976, escrito por um professor de jurisprudência da Harvard Law School, chamado LON L. FULLER. Anotei nele que terminei a leitura em 01/03/1998, quando cursava Direito na Uniplac. Não passei do primeiro semestre e hoje, quase 30 anos depois e com minha filha quase na metade daquele curso, é cada vez mais crescente a vontade de retomá-lo.
Mas vamos ao livro. Quatro experientes exploradores de cavernas ficam presos após um desabamento. Com fome, usam o rádio para consultar as pessoas que estão tentando resgatá-los, se poderiam matar e comer um dos membros enquanto aguardam o resgate. Obviamente ninguém respondeu. Aquele que propôs a forma do sorteio para ver quem deveria servir de alimento aos demais, se recusa depois a participar. Já podemos adivinhar que foi ele o escolhido, morto e comido. Para piorar, ocorrem outros deslizamentos que atrasam o salvamento e que matam mais dez operários.
Ao serem resgatados, todos vão a julgamento. A lei do país é clara: “Quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte”. Se condenados por matar e se alimentar do ex-companheiro, serão enforcados.
No Supremo Tribunal, o voto de cada juiz é um passeio pelas grandes teorias do Direito positivo e Direito natural, a letra e o propósito da lei, o que é a interpretação jurídica e a complexidade dos dilemas morais enfrentados pelo sistema judicial. Por isso, o livro é tão famoso entre os estudantes.
Um dos juízes comenta o absurdo de salvá-los para agora enforcá-los. Outro comenta que perdoá-los seria uma transgressão à lei e que essas levam ao caos. Outro voto – um dos meus prediletos - diz que existem lacunas na lei que precisam ser preenchidas, e, é claro, neste caso em particular poder-se-ia realizar a justiça “sem debilitar a letra ou espírito da nossa lei e sem propiciar qualquer encorajamento à sua transgressão”. Outro voto ainda, descreve que os soterrados, não estando mais sobre a lei do país, escreveram outra “constituição” que foi aceita por todos: logo, tinha validade.
Outro ainda menciona que eles conheciam a lei e o seu propósito, então não importa se 90% da opinião pública recomenda libertá-los; como juiz, deve: “aplicar não minhas concepções de moralidade, mas o direito deste país”. E a lei é explícita em dizer que a eliminação de pessoas indesejáveis é um monopólio estatal.
Um voto mais relativista, diz que uma pessoa que tem a vida ameaçada, fará o que for possível para repelir seu agressor, não importa o que diga a lei. Ao que se segue o protesto: “mas está falando daquele que ia ser devorado ou dos que estavam com fome?”
Após os requerimentos de clemência e as acusações, é claro que não interessa se eles foram libertados ou não, o livro é daquelas viagens em que o mais legal é o trajeto e não o destino.
E você querido leitor: Que pensa que seria justo nesse cenário? Quod erat faciendum? (O que deveria ser feito?).
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