
No Brasil de hoje, a sensação é de que vivemos em uma espécie de democracia sob medida — sempre ajustada para caber nos interesses do momento. A cada crise, decisões e discursos que antes seriam tratados como absurdos passam a soar razoáveis. Não é só sobre política. É sobre como a opinião pública vem sendo empurrada para aceitar o que, até pouco tempo atrás, pareceria inaceitável. É aqui que entra a 'Janela de Overton'.
Criada pelo analista Joseph P. Overton, essa teoria descreve o processo pelo qual ideias transitam do “impensável” para o “aceitável”, até se tornarem políticas públicas consolidadas. Não é mágica: é engenharia social. Grupos organizados — de governos a militâncias, de corporações a partidos, da grande mídia a influenciadores — usam crises, narrativas e especialistas para mudar o centro de gravidade do debate público.
Funciona assim: uma ideia que hoje seria vista como absurda é introduzida de forma indireta, associada a valores paralelos (orgulho nacional, segurança, justiça social). Com o tempo, passa a ser tolerada (“com ressalvas”), depois discutida, até que se torna “popular” e, finalmente, “obrigatória” como política oficial.
Um exemplo clássico foi a Copa do Mundo de 2014 e as olimpíadas de 2016. A ideia foi inicialmente rejeitada pela população, por desviar recursos de prioridades óbvias. O argumento era sólido: como um país com tantos problemas estruturais de infraestrutura, saúde e educação, ao invés de investir nestas prioridades, vai construir estádios de futebol e outros equipamentos caríssimos?
A janela entrou em ação maquiando a realização com o discurso de orgulho nacional e oportunidade histórica para o país. Sob tais argumentos, a janela foi se pelos níveis até se tornar política oficial. Quando o tal 'legado' se revelou um amontoado de estádios ociosos, obras superfaturadas e promessas vazias, a janela voltou à posição original e a revolta veio. No Brasil de hoje, a janela está sendo empurrada de todos os lados.
O STF, com Alexandre de Moraes como protagonista, normaliza decisões que extrapolam a Constituição: bloqueio de contas, censura prévia, prisões preventivas indefinidas, cassação de direitos políticos sem trânsito em julgado e até criminalizar a intenção de fugir. O resultado? Práticas que eram “impensáveis” passam a ser vistas como “aceitáveis” — em nome de “proteger a democracia”, com a anuência do Senado, que deveria coibir a prática.
A direita radical empurra na outra direção, com discursos inflamados, teorias conspiratórias e relativização de ataques às instituições. O caos alimenta a tolerância a medidas duras, mesmo que venham do outro lado, porque “o inimigo precisa ser contido”. Sob argumento de fraude, tentou se vendar a ideia de que uma ruptura institucional e uma intervenção militar seria, novamente, aceitável, também sob o pretexto de "proteger a democracia".
De seu lado, a esquerda radical também faz sua parte, defendendo cada vez mais abertamente, projetos de controle da mídia e criminalização de opositores, normalizando a ideia de que certas liberdades podem ser sacrificadas em nome da democracia e da “justiça social”.
Cada lado usa suas ferramentas: redes sociais, especialistas, influenciadores, narrativas e crises fabricadas. O resultado? A sociedade é condicionada a tolerar o que antes seria intolerável — e muitas vezes, sem perceber que está sendo conduzida.
O grande perigo não está em uma decisão isolada, um discurso inflamado ou uma lei polêmica. Está no acúmulo silencioso desse deslocamento. É acordar um dia e perceber que a “democracia” ainda é citada em discursos, mas estamos numa nova realidade disfuncional, incapazes de alcançar o país que tanto sonhamos.
Por isso, a pergunta que precisa ecoar não é só “quem está certo?” ou “quem está empurrando mais forte?”. É: o que, de fato, estamos discutindo?
Será que o debate público está tratando do mérito real das questões — ou de temas paralelos, cuidadosamente escolhidos para anestesiar, distrair e deslocar a nossa percepção? Se você perceber que a conversa desviou do essencial para uma pauta acessória, parabéns: você acaba de flagrar mais uma operação em curso para mover a Janela de Overton.
É impossível escapar totalmente desses mecanismos. Eles são usados pela esquerda, pela direita, pelo centro e até por quem veste toga. Mas, no mínimo, dá para estar atento. E, se não dá para evitar a manipulação, dá para ser algo mais raro hoje em dia: um otário consciente.
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