Solidariedade que aquece: Copercampos promove Campanha do Agasalho, Cobertores e Livros |

Ela passeia pela praça com o carrinho, cuida da mamadeira, ajeita o gorro com delicadeza, dá bronca com afeto treinado. Quem observa, imagina ser uma mãe zelosa, talvez no primeiro filho. Mas, ao se aproximar, o susto: é uma boneca. De silicone. Com nome, certidão de nascimento e, pasmem, perfil nas redes sociais.
Esse é o fenômeno dos bebês reborn. Bonecos hiper-realistas, com veias, peso, textura e até cheiro de recém-nascido. Algo que começou como terapia, virou passatempo e agora, se tornou símbolo de uma sociedade surreal e adoecida, com adultos idiotizados andando pelas ruas carregando bonecos como se fossem filhos de verdade — e pior, acreditando nisso. Mas não se trata de brinquedo. Trata-se de sintoma.
Estamos vivendo a era do afeto sem risco, da maternidade sem caos, do vínculo sem contradição. A geração que defende autenticidade a cada post parece cada vez mais empenhada em construir relações que não exigem verdade — apenas encenação.
O bebê reborn não chora no meio da madrugada. Não adoece. Não exige renúncia. Não responde mal. Não cresce. Não reclama. Não sai de casa. É o filho ideal num mundo surreal que já não sabe mais lidar com as frustrações do mundo real.
É duro dizer, mas talvez a boneca seja só a forma mais honesta de muitos expressarem o desejo contemporâneo por controle emocional absoluto. Você cuida, veste, embala, mas jamais será desafiado. Porque tudo ali é sobre você — não sobre o outro.
Ironicamente, esse fenômeno se multiplica num tempo em que relações humanas estão se tornando descartáveis, líquidas, voláteis. Em que amizades terminam por curtidas, casamentos implodem por notificações, e filhos reais disputam espaço com a projeção de filhos perfeitos. Os bebês de silicone se tornaram o afeto sob demanda. Sem margem para dor, conflito ou transformação.
No fundo, parece a realização de uma forma radical de narcisismo afetivo: amar o que nunca vai amar de volta. Acolher o que nunca vai frustrar. Cuidar do que nunca vai partir ou desafiar.
Talvez a questão não seja a boneca em si — mas o vazio que ela tenta preencher. Um vazio relacional que deixou de ser tratado com maturidade e passou a ser coberto com filtros emocionais, silicone e afeto coreografado.
A geração que não aprendeu o significado da palavra “não” e grita por liberdade afetiva, se tornou incapaz de lidar com os riscos que vêm junto ao amor do mundo real: rejeição, dor, imperfeição, perda. Então cria simulacros. Fantoches emocionais. Vínculos sob contrato. Relações com manual de instrução.
E aí está o paradoxo: quanto mais evitamos a dor, mais fabricamos solidão. Quanto mais controlamos os afetos, menos os sentimos. Porque amar de verdade sempre será arriscado, incômodo, imperfeito. E por tudo isso, real.
Essa geração que pariu bonecas e aborta a realidade talvez só esteja dizendo, sem perceber: “Eu quero afeto, mas só se ele não me mudar. Só se ele me obedecer. Só se ele for bonito, me der tudo que eu quero, e for mudo.”
Só que o amor — o amor de verdade — não cabe nessa estética. Ele é bagunçado, barulhento, imprevisível. Ele chora no meio da madrugada, cresce demais, nos desmonta e nos reconstrói. Ele exige. Ele dói. Mas, acima de tudo, ele proporciona sentido à vida humana. As bonecas não devolvem nada. Só uma ilusão débil de controle.
E isso, no fim das contas, talvez seja o retrato mais honesto do nosso tempo:
uma geração que adota o afeto como performance e larga a realidade na porta da maternidade emocional, tentando encontrar um sentido que só vão encontrar no lugar que decidiram abandonar:
o mundo real.
Deixe seu comentário